quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Camões versus mangue

Na volta pra casa, se sentindo acolhida pela palavra falada e escrita, trombou com a frase de um poeta, homem e português, que desceu como novalgina líquida em seu dia “Transforma-se o amador na coisa amada”. Foi difícil de lidar com o gosto da frase quando o objetivo de seu corpo e mente no mundo vão contra, mas ela faz sentido, até no uso da palavra “coisa” para personificar o ser amado. Reciprocidade é oferta rara no mercado porque amar dá trabalho. Transformar-se na coisa amada é risco para os que se aventuram, tropeço esquisito tipo vestir roupa que não cai bem. 

Apesar do amargo na boca depois de engolir, a organização das caixinhas dos amores está em dia e o respirar tranquilo, mandaram avisar que não há como ter controle sobre tudo. Perdeu o medo de perder e o medo de se perder também. Foi nessa perda que teve certeza de que ninguém vai embora, geral tá fatiado e com partes distribuídas por aí. 

Chegou em casa e no dar play numa lista qualquer no YouTube, tocou Chico, também poeta, também homem, mas brasileiríssimo, nordestino e que canta o mangue como ninguém “A responsabilidade de tocar o seu pandeiro é a responsabilidade de você manter-se inteiro”. Camões, querido, em terras úmidas você perde feio.


terça-feira, 20 de novembro de 2018

Nossos caros leitores

Todas as vezes que me percebo com uma noite livre na cidade-ponte me perco do objetivo principal e tudo se concentra na forma de travessia dessa noite solitária. Sei que não vou receber um convite embrulhado em papel de presente vindo pelo whatsapp com o nome “quer passar essa noite comigo?” e tô assistindo de camarote tudo caminhando o mesmo caminho pela, o que? Quarta vez? Ando saindo do corpo só pra me olhar de cima em baixo com cara de espanto e sentir um misto de pena e admiração por essa coragem que tenho de te dar, de novo, sem que você se esforce para merecer, o lugar privilegiado de dar a ideia do baile e depois esperar que eu te chame pra dançar. Porque eu sempre chamo. E sabemos bem porque chamo.


Li num desses perfis-poéticos-de-instagram, sobre pessoas escrotas, abismos, pseudo-salvamentos e configuração de relacionamentos tóxicos. Fico aqui rindo com essas explicações quando penso em nós ~ que nós? ~ porque passar noites sortidas indo até você, depois de ter que te chamar pra dançar, nem é um relacionamento quanto mais tóxico. Eu nem consigo encaixar esse monte de pedaços de caminho no lugar duro, mas simples, de uma traição, agressão, manipulação ou algo que o valha. Nem isso você me dá, a oportunidade de encaixar a gente em algum lugar. O abandono, o limbo, o morno de que a bíblia tanto fala pra cuspir, vira chiclete na minha boca. Eu preferia que fosse quente mas eu não cuspo, fico mascando o chiclete sem gosto.

Fui empurrada pro abismo, saí dele sozinha e ainda entrei numas de querer salvar quem me empurrou sem que você pedisse. Isso é amor? Só porque é saudade todo dia? Na minha última uma-hora-por-semana, ela perguntou o que tudo isso significa. Tô pensando pra dar uma resposta digna na próxima e o esboço é: acredito que eu tô doendo sozinha, me colocando por sucessivas vezes nesse lugar porque preciso gastar essa minha onda de algum jeito, já que você se recusa a gastar ela comigo. O defeito é querer gastar a onda de qualquer jeito, eu acabo me gastando junto.


Sabe porque eu escrevo? Porque preciso desaguar em algum lugar esses litros de palavras, já que você faz questão de manter o ambiente controlado. Sabe porque eu publico? Porque preciso que alguém compartilhe dessa novela comigo, já que é você o meu leitor assíduo, mas não me dá nenhum feedback. Esses dias me disseram que nós somos um casal. Nós? Meu corpo todo está em guerra com meu coração rasgado e eu vou parar de escrever sobre nós. Nós? Não existe nós. E não vai existir, eu sempre soube disso mesmo que meu coração rasgado insista em colocar fones nos ouvidos para não ouvir o resto do corpo gritando que não vai ter nós.  Eu vou parar de escrever sobre as minhas tentativas de nós e vou gastar minha onda em outro caminho, vestida de preto e debaixo de Sol.


Diante da perspectiva da novela, fico pensando que parar de escrever sobre você pode me custar alguns dos meus leitores. Eles são meus, seus ou nossos? Vivendo aqui essa noite solitária, meu único desejo é que você pare de só dar ideia pra baile e passe a escrever junto comigo. Mas depois que o tesão acabar, eu vou voltar para a realidade e vou ouvir não meu corpo, mas sua voz me dizer “Eu já escrevo sozinho e só faço baile onde você não é convidada pra dançar”. E, acabou? Fim?

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Meu amor pelo Rei

Minha família, aquele núcleo base em que um se apoia no outro e que se destaca dos parentes, se forjou no candomblé pelas mãos de uma matriarca branca, filha de Yemanjá, e de um patriarca preto, que nos deixou precocemente, filho de Oxalá. Eu não tinha nem 3 anos completos quando por conta dos caminhos que precisamos percorrer, nos afastamos do culto aos ancestrais. A família do meu pai tinha uma fé tranquila no espiritismo de Kardec e minha mãe, uma médium de mão cheia, pôde se acolher nela durante anos cuidando da gente e de Ogum, orixá que nasceu em sua cabeça há 34 anos e que recebeu com toda sua bênção e proteção cada Pinheiro que brotou nessa terra depois disso.


Aqui na minha cidade, um vale na Baixada Fluminense que fica entre as serras do Mendanha e de Tinguá, as tempestades na época da minha infância eram monstruosas. Descampados e casas baixas deixavam raios e trovões fazerem festa no céu e na terra. E eu sempre morri de medo de raios e trovões. Com o passar dos anos e o aumento do número de casas e andares nas casas as tempestades foram amenizando, mas meu pavor não. Fui organizando o medo da melhor forma que consegui e nos momentos em que a chuva vinha acompanhada da cabeça zoada, eu não dava conta. Podia ventar e chover rios, mas raios e trovões eram a minha kriptonita e sempre perderam feio para os ratos.


Um dia, minha mãe voltou pro axé. O reencontro dela foi tão bonito que carregou os Pinheiros junto e como não podia ser diferente, eu também fui cuidadosamente entregue a Oxaguiã e Oxum, orixás donos da minha cabeça. Em meio a essa redescoberta do sagrado me descobri perdidamente apaixonada por outro orixá, o Rei Xangô. Quando olhava pro alto era ele quem sempre me olhava lá de cima. Foram muitos encontros especiais com ele, com filhos dele e quando engravidei do meu menino mais novo não tive dúvidas, dei o nome de João e disse em voz alta que era afilhado do Rei de Oyó.


Outro dia, ouvindo uma música de um cara que tem Exú no nome, me dei conta de que havia algumas tempestades que eu não entrava em pânico. Xangô me fez entender na prática, com tempo e carinho, onde mora o sagrado no candomblé, nessa sutileza e grandeza da relação de amor, respeito e reverência à natureza. A ancestralidade vibra no corpo e faz cada vez mais sentido.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Pra gente se entender, sei lá

(Para ler ouvindo Amor de Verdade / MC Kekel e MC Rita)

Novembro chegou e fazem dois anos do dia exato que engravidou. Foi no Dia de Finados, que ironia. Essa semana também teve um insight interessante: só cria quando dói - e ele é mestre em fazer doer e bagunçar as ideias, até quando parece simples. Obviamente não é simples mexer em terreno onde tem joelho de porco enterrado. Shakespeare tinha razão quando colocou na boca de Hamlet o "ser ou não ser". Ser ou não tanta coisa. Sempre ganha de presente essa encruzilhada aberta, caminho reto ou uma simples bifurcação são para os fracos. O Rio é um bagulho inteiro, o Moro não vai caçar o Bozo, não existe ketchup que não faça mal e nunca vão ter um dia pra se esquecerem que o mundo existe. Porque tem mundo demais em volta, dos dois. Vai seguir no ser ou não ser essa pessoa que não diz não? E como se não bastassem esses anos a bordo de uma montanha russa, a paisagem no trajeto continua bonita e o sorriso também, apesar do cansaço crônico e todas as cabeçadas dessa geração. Cancerianas não se esquecem de nada, mas se sabotam com maestria ímpar.


quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Ratos e esquilos

A tradução do símbolo do infinito pra mim é angústia. Aquele oito deitado, dando voltas, tipo pista de fórmula um que não acaba nunca mais. Sinto angústia porque me lembra essa relação que não começa, que não termina, que nunca foi relação na verdade. É sempre essa valsa triste que começa devagar, passa para um flerte à distância, os dois fingem que não estão entendendo, um convite, um rompante, uma noite que mata as saudades e “voilà”, no dia seguinte você se apressa para pôr um curativo e estancar o sangue da ferida aberta. Semanas depois repetimos o ensaio, partindo da deixa da valsa triste. Não há analogia melhor que "machucados provocados conscientemente" para traduzir essa coisa, esse sentimento que só tenho vontade de enfiar a mão na garganta pra ver se vomito. Estou cada vez mais exausta tentando sair desse labirinto de rato de laboratório. Lembro agora da conversa sobre ratos e esquilos, sobre transmitirem as mesmas doenças e serem vistos de formas tão distintas.Você se vê como? Rato ou esquilo? Chuto que nenhum dos dois, você se vê Pegasus, voando, sozinho. Um dia eu invento um “The End” melhor do que fim de filme do Tarantino e você não vai precisar correr com as ataduras. Vai seguir voando, bem alto, e sozinho.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Aquele fundo desfocado bonito

Quando saiu de casa pela manhã, escolheu andar sem óculos durante todo o dia. Ver tudo com aquele fundo desfocado bonito que a gente vê nas fotografias parecia razoável depois de se sentir cuidada. Desejada, querida e até amada, sim, já tinha vivido algumas vezes, mas cui-da-da era novidade. E, talvez, fosse a primeira vez em que tudo estava acontecendo sem que parecesse mais um campo de batalha do que amor.

Era esquisito, haviam momentos em que não sabia muito como caber. Sempre que ele dizia "vamos fazer juntos" ou "deixa que eu faço pra você" ela desmontava, não conseguia nem olhar nos olhos dele. Mandar a mensagem dando mole foi tranquilo, ser chamada de safada na hora do sexo de boa, mas "deixa eu cuidar de você" ela ainda precisava se acostumar. É cruel só de contar, imagina de sentir. Fazia tempo que não era namorada de alguém, e principalmente, não se lembrava de ter sido assim facinho com ninguém.

A vontade era juntar seu tesouro em forma de print, as conversas cheias de delays nos apps, aquele monte de abusos com seus quereres e pedir que algum ser iluminado apagasse essas memórias. Porque isso ainda não era possível? "Traição é traição, romance é romance, amor é amor, e um lance é um lance" já diziam os Hawaianos, e a galera ainda não entendeu como organizar direitinho.

Passou aquele dia dedicada ao que dá sentido à sua trajetória, deu e recebeu notícias boas e, no caminho para sua uma-hora-por-semana, vendo o mundo embaçado em segundo plano, refletiu sobre o quanto há de felicidade e beleza no seu ordinário, e o quanto ela se sente grata. A ela mesma, aos parceiros de jornada e ao universo.

Saiu com o corpo meio febril, era quase sempre assim. No metrô, leu o texto da comadre e chorou, por elas duas, por tanto acúmulo. Chegando sozinha na casa emprestada, começou a ver aquele filme em que a mulher, sequestrada e estuprada, decide sair do quarto quando o filho completa 5 anos. Não deu conta. Sua angústia foi tanta que parou aos 20 minutos com a respiração ofegante. Primeiro porque a claustrofobia da maternidade tem cheiro, e nem sempre é bom. Segundo porque considerando as devidas diferenças, a identificação de uma fêmea humana com outra numa experiência como essas, mesmo na ficção, paralisa. Sentiu uma saudade doída dos filhos e de casa. O limite dela para o amor era medida por eles. Competir jamais, não amar eles junto nem pensar. Limites válidos principalmente pra aqueles em que dividir seria óbvio. É óbvio, não?

Ainda estava com a boca seca quando recebeu pelo whatsapp a notícia da morte de mais uma bixa preta na perifa, bem perto de casa. E doeu, mais uma vez. Pensou na irmã trans, pensou no namorado que ficou, pensou no amigo cor que foi assassinado há poucos anos. Pensou no amor. E no que queremos do amor.

As legendas amarelas de uma série sobre crimes, que deu play só pra ter companhia, estavam ficando muito embaçadas, a ponto de não dar pra ler. O cansaço estava tirando o desfocado bonito, agora tudo era nevoeiro. Rolando a tl de uma rede social, passou por um meme que dizia "fica triste não, tá todo mundo meio perdido mesmo". Mais uma desculpa pós-moderna pra não olhar o horizonte. Ainda bem que na terra dela quase não tem arranha-céu. "Ei João, fica triste sim, a gente tem que se achar pra poder se perder de novo", essa é pra você, filho. Amanhã, é presente.

sábado, 11 de agosto de 2018

Sola

"Sabe, gente
É tanta coisa pra gente saber
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer

Sabe, gente
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder"

Gil na letra de "Preciso Aprender a Ser Só" definiu a semana daquela moça. Corpo e mente pediram para ela parar depois do derradeiro choque térmico entre o laço e a fita métrica, no dia seguinte ao aniversário do lugar onde foi mais frágil. Tentando não dar ouvidos e seguir sua rotina de cruzar cidades pra dar sentido à vida, ela não parou. Ela se recusa a parar. Mas a conta chegou, o corpo obrigou depois da mente se desfazer em lágrimas ao ouvir a música. Depois de um dia inteiro vociferando contra o livre arbítrio, já que a nossa liberdade só começa quando termina a do outro e as pessoas estão cagando nas cabeças umas das outras, ela só queria paz. Uma mãe em estado solo não quer guerra com mais ninguém. O problema é que depois de ser atropelada por tantos trens achando que era a tão desejada luz no fim do túnel, ela tende a achar que o túnel é infinito. Tentando dar fim à mais uma pesada constatação, escreveu no seu caderninho de folhas coloridas "você consegue ouvir daí o meu coração bater?" enquanto ouvia em looping "eu preciso aprender a ser só, reagir e ouvir, o coração responder". A vida é didática, só não enxerga quem não quer.

domingo, 29 de julho de 2018

Ter-nu-ra

"Não há nada mais forte do que uma mulher destruída que se reconstruiu".

Li essa frase hoje e juro que se eu tivesse um caminhão, essa seria a frase da traseira. Mas por hoje eu estou exausta de ser forte sempre, de fazer fundação e levantar parede sozinha. Daí tenho deixado que outras pessoas se aproximem pra, quem sabe um dia, encontrar alguém que divida o trabalho braçal e encorajador de construir um novo lugar comigo. 

O reposicionamento do querer é dolorido, mas o que eu mais sei fazer na vida é querer, então preciso de alguém que queira e que devolva. E isso você já sabia, a nossa última conversa sobre construções foi cheia de analogias e ao mesmo tempo esclarecedora. Ainda me pego rolando mensagens atrás de um sentido, de você, de nós, e no fim das contas, de mim mesma. Em meio às constatações e recalculando a rota, está complexo me reconhecer. Acho que é normal, não é? Faz parte do processo de desapego. Só que o que está pegando agora é justamente uma dose restante de apego. Cheguei naquela fase em que a gente não consegue deixar o sentimento ir. Foi tanto tempo de coração batendo forte e de contradições que me assoberbavam, tanto tempo pedindo pra que acabasse, que agora que o mar está manso, eu não estou sabendo lidar com a calmaria. Todo o rebuliço que você me causava, está indo embora, me dando adeus da esquina faz semanas, como quem só precisa que eu chame pra ele voltar. Mas ele vai cansar de acenar em breve e vai embora. E você vai junto com ele, sem me mandar a foto do meu coração revelada e pendurada na tua parede. Na verdade eu nem acredito muito que ela exista e, se existir, alguma coisa ficaria pra trás, invariavelmente. Da próxima vez que alguém se aproximar, deixe que façam um jardim nesse terreno baldio, vazio ele não vai servir pra nada. Só não esquece de que as flores do terreno ao lado também precisam ser regadas, e é só água meu amor, não tem segredo. Chora de vez em quando e principalmente, respira. Vou seguir daqui lutando pra manter a ternura, que essa precisa ficar.

sábado, 21 de julho de 2018

Quando um samba define

"Logo logo assim que puder vou telefonar. Por enquanto tá doendo."

Tem dia que o amor estala dentro e se expande, igual estrela quando se choca no universo. Ela não teve tempo de esperar deixar de doer pra telefonar, como diziam os versos de "Eu e Você Sempre" na voz maravilhosa de Jorge Aragão. Telefonou e como sempre, se arrependeu, porque não importa o quanto você se importe, algumas pessoas não se importam.

Enquanto bebia a cerveja no copo e fingia ouvir quem estava em volta, só pensava no que faria se ele deixasse de existir. Ao invés de perguntar "como você está?" a vontade era de enviar "é como diria aquele slogan, potência não é nada sem controle".

Não importam as boas intenções e o inferno estar cheio, sempre há lugar pra mais um. E não importa o quanto o amor expanda, porque o que resta são os cacos do acidente.

"Encontrei o anel
Que você esqueceu
Aí foi que o barraco desabou..."

domingo, 8 de julho de 2018

Toda a flora

Uma personificação da Deusa no palco, outras tantas no chão e no teto. No meio da catarse coletiva que pedia pra deixar brilhar, todas elas se curavam, mas uma das Deusas do chão pulsava como quem se exorciza. Quando a Deusa que cantava chamou o piloto, o arremate no bordado fez ainda mais sentido e o autoexorcismo deu resultado, porque os processos não acabam, eles só dão lugar a outros.

"Que apesar de tudo me adora não foi suficiente, não é suficiente, porque é tudo tão mais real e bonito quando é facinho, quando todo mundo gosta de gostar. Vocês não concordam?". Ela pensava, se perguntava e dizia às outras ao mesmo tempo.

Há uns três ou quatro caminhos atrás, a Deusa do chão tinha confundido fogo com terra e acabou queimando o que restava. Mas não restava mesmo muita coisa, então foi melhor queimar tudo como num ritual antigo que conferia à árvore condenada alguma dignidade, do que perder mais tempo adubando as raízes de um tronco sem vida.

"Entendido isso, agora vamos lidar com isso. Como? Vivendo. É um desperdício ficar correndo atrás do próprio rabo. Quem quiser, que fique. Vocês não concordam?". Ela pensava, se perguntava e dizia às outras ao mesmo tempo.

Sendo o próprio gozo, dando passos em direção ao outro e o outro em direção a ela, saudade todo dia sendo amor, se amando junto com o outro e querendo isso pro outro também. Amor próprio, reciprocidade, afeto e respeito - pra deixar claro pra quem finge que não entende.

Dessa vez o caminho era de água com terra de verdade, lama pura pra todo lado. Aí não dá pra uma Deusa do chão, filha de caranguejo, não mergulhar. Eram dias de desfazer para refazer, dias para agradecer.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Mariwô


Muitos quase afogamentos depois, a fala felina dela foi lá e fez o que teve vontade. Ciclos de vinte e quatro meses acontecem e, bem na madrugada de São João – ou de Xangô, pra quem prefere o panteão africano como eu – tudo ficou num tom ansioso acima.

Depois de mais de dia de espera, a noite foi real, pé no chão e leve como um punhado de terra da cor da pele dele. Receberam a visita de brigadeiros mágicos, dos mais variados tipos de andarilhos e por último, de uma flor e de um grilo, vivos, mas feitos de uma palha que parecia folha de dendezeiro. Formava-se ali um reinado compartilhado, sem preocupações com futuro ou passado e que estava de parabéns. Dali, o reinado atravessou a cidade numa missão doce e, por fim, seus integrantes se dividiram. Sabiam que a gente vem nesse mundo para fazer a nossa parte, da forma que a gente deve ser e, tudo bem.

No meio da rotina do dia seguinte, ela releu o recado de um dos brigadeiros mágicos que dizia “O amor amansa pela constância” bem na hora que começou a tocar Solamento. Sentiu um toque na boca do estômago avisando que já era hora de ouvir outra canção e, enfim, respirar aliviada, porque o reinado sabia também que quanto mais a gente é quem a gente deve ser, melhor para gente, e para o mundo. Fosse o que fosse, como boa filha da rainha ancestral, não deixaria mais que faltassem manjericão, erva cidreira, flores amarelas e, espada-de-são-jorge para que todos os caminhos se mantivessem abertos.


sábado, 23 de junho de 2018

Ana, a princesa e a encantada

A encantada disse para Ana assim, na lata, que a princesa não morreria tão cedo. Não da doença que lhe acometia mas sim, olha que ironia, se a morte viesse pra logo, viria da doença nos pensamentos que a doença provocou. E Ana não podia fazer nada em relação a isso.

O fato é que a princesa, achando que tinha pouco tempo para dar conta de todos os planos que a levariam ao trono tornando-a o melhor rei que seu reino já havia visto, estava endurecendo como concreto, mirando e acertando em sua própria cabeça.

Ana não tinha o que fazer com aquela informação, ela era totalmente inútil. A princesa estava inalcansavel, não acreditava em encantados e, havia montado pra si mesma um arquétipo que era um misto de Hitachi e Dr. House que dava nos nervos. Olhando de perto, ainda havia pitadas de Dom Quixote - que a princesa não nos ouça. Todos clássicos heróis de atacado que colocam o varejo em segundo plano, mas que, claro, têm seus motivos nobres para fazê-lo, afinal, não há tempo para os detalhes, nem para as sutilezas, muito menos para ser feliz.

A princesa, aos olhos de Ana, era mais uma mistura de Joel Barish, Michel Poiccard com um pouquinho de Aslan, mas isso não era real, o querer bem dá uma embaçada na vista mesmo.

Depois de deixar a encantada brilhando na varanda gelada, Ana foi até o livro da capa preta com os pensamentos às voltas com o insolúvel, abriu uma página aleatoriamente e leu:

"você precisa parar
de procurar um porquê em algum momento
você precisa deixar quieto"

Pegou um pedaço de vidro do tamanho da palma da mão, riscou o que a encantada havia dito e, por fim, seguiu o conselho aberto no livro.

Fim.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Guerra fria

"Você não vê mais os meus stories. Eu sei, a vida online é uma praga, todos precisamos de pausas, as urgências nos deixam doentes, o trabalho é enorme e é o que mais importa na vida. Mas e quando são as redes que diminuem essa distância de tantas cidades entre a gente? E você não deixa de publicar um só dia? E não deixa de aparecer online no WhatsApp? E quando tem uma criança nossa crescendo aqui e nem pelo aplicativo você consegue acompanhar?"

A mensagem que mandou era essa. Ou quase essa, mas se não disse isso, era o que gostaria de ter dito. Quando enviou o peito apertou e pensou na Guerra Fria em que estavam vivendo nos últimos meses. Guerra que era fria porque ela não podia mais lidar com o abandono e engolia sapos em forma de mensagens que demoravam dias para serem respondidas, tentando humanizar a ele e a si mesma, porque a essas alturas a forma humana de ambos já tinha há muito sido abandonada, estavam totalmente despidos. Ela estava ok com isso, ele na tentativa tola e bizarra de se esconder, era risível. Constantemente seu lado selvagem a olhava bem nos olhos sem entender seu comportamento feminino clássico, aquele que homens gostam bem, que moram nas esperas, nas angústias, na resiliência - não à toa todos substantivos femininos. Não havia reciprocidade, apesar dela enxergar todas as feridas dele e do quanto ela tinha amor o suficiente para lambê-las e acolhe-las como se fossem suas. Mas mesmo que seu amor fosse enorme, ela não podia dar sem receber. Não podia. Não podia. Não podia. O passo em direção ao outro só quando o outro der passos em direção a você. A solidão no embalar do pequeno era tão fria quanto a guerra, mais fria do que o inverno que estava chegando. Mais fria ainda que a noite do abraço em frente ao circo. Exausta do looping das lembranças dessa primeira noite e da última, das tentativas, das dores e mergulhada numa saudade eterna do que não ganhou espaço pra ser vivido, só se agarrava em todas as razões pra esquecer. Não adianta ser praticamente da mesma origem, ter desejos parecidos, e nem o toque ser do jeito que é. Ela vai ter de nascer, de novo, outra vez.

"E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você"

sábado, 2 de junho de 2018

Narrativa do processo de des(des)amor

Prólogo

[teste] se eu começar a falar com vc só por aqui vc me responde?

Hahahaha aqui notifica

Capítulo 1

cara, eu te estresso muito ?

Vc não me estressa. Vc me frustra

Capítulo 2

De onde tu gosta de mim? Não sei como me aguenta

Te juro que tb não sei. Já perdi o controle disso tem tempo. Agora eu tô só tentando equilibrar os pratinhos

Vc precisa ver Atlanta.

Capítulo 3

oi. será que a gente consegue se falar mais tarde? por aqui mesmo?

A troca vai ser só essa? Eu desabafo, vc responde com tuas verdades e pronto? Só pra eu saber aqui como me comportar mesmo

Capítulo 4

desculpa não faz parte do teu vocabulário né?

Epílogo

no Instagram é fofa, no WhatsApp briga comigo

Tô desintoxicando. Tentando deixar de ser fofa aos poucos. Uma rede por vez.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Exu

Yami se deu conta de que quem fazia tudo era ela. Caçava o bicho, arrastava até em casa, puxava água do poço, cozinhava no fogão à lenha, banhava e alimentava as crianças, varria e organizava a casa e, ainda, cuidava da horta nos fundos do quintal. Nesse dia fatídico, olhou em volta e o tempo ganhou outro compasso, deixou de ser linear e passou a ser cíclico. Ela podia sentir o gosto, o cheiro e a textura da vida. Descobriu que era mais simples se acolhesse e acalentasse sonhos e pesadelos, sendo paciente consigo mesma, afinal, era a única responsável pelo seu lar. Já tinha dito tudo o que precisava dizer, sentido o que precisava sentir, doído o que precisava doer e ainda faltava. Os hífens, não à toa usados para criar espaço, estavam todos postos em seus devidos lugares. Ela não havia se mexido para inserir nenhum deles, mas era fato que estavam lá. A sensação era aterrorizante e libertadora. O momento chegado era de sentir prazer nos rituais cotidianos e de criar espaço para apenas se balançar na rede fumando um cigarro de palha. Era uma delícia enfim existir inteira. Pensava que tinha muita metade por aí se achando inteira e estragando tudo. Pra existir junto, só daria certo se existisse inteira também. Pronto, era isso. Agora a porteira estava segura de novo.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

A flor, a terra e o broto

Flor não sabia ser de outro jeito, só sabia amar muito, amar grande, amar pleno. E na sua ânsia de viver atropelava os tempos. Afinal, já que era amor, precisava do agora.

Terra não sabia ser de outro jeito, só sabia não dizer. E na sua falta de habilidade ou querência em abrir espaço, criava pedras. Afinal, precisava se manter seguro de si, pedras são mais sólidas, mais fáceis de manusear.

Terra escolheu não abrir espaço, esse era seu modo de funcionamento, e ponto. Flor não podia mais esperar, nem se tratava mais de perdão, se tratava de amor. E amor, sabemos, é foda. Foi então que as gargalhadas deixaram de existir, restou o broto a ser regado. E isso ainda é para a vida toda.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Papo reto

Parando as Horas - Flora Matos

Na responsabilidade de ser quem somos
O que interfere em quem nós realmente somos
Hoje te trouxe a passagem pra invadir meu sonho
Minha sede de viver pergunta pra onde vamos
Minha consciência diz que estamos errando
Coração te exige pra continuar pulsando
Ele dá o maior tempero e o maior engano
E a força dessa união diz pra eu seguir te amando

Eu não fui programada pra jogar seu jogo
Mas tô contando as horas pra te ver de novo
Parando as horas pra te ver

A rua onde eu moro foi feita pra você também
Venha me visitar e traga suas coisas no trem
Sou feita dessa paixão que não me convém
Mas é você quem quase sempre convence tão bem
Queria poder te levar sem perguntar "de quem?"
É com você que eu vou onde eu posso chamar de além
Eu paro o tempo e vou no contra quando você vem
Quando vai me pergunto se consigo ficar sem
Sem possuir

E a força dessa união diz pra eu seguir te amando

Eu não fui programada pra jogar seu jogo
Mas tô contando as horas pra te ver de novo
Parando as horas pra te ver





Ouça aqui o álbum Eletrocardiograma completo!

(se isso não é um papo reto, eu não sei mais o que é)