domingo, 23 de novembro de 2014

Isso lá é bom

Os corpos precisavam ocupar outros espaços e foi aí que decidiram passear de quando em vez sem a presença do outro. Parece simples, mas pra eles era como se entrassem numa realidade paralela e isso causava euforia. Apesar da doçura do silêncio, do medo dos insetos, de todo aquele concreto e da liberdade da solidão, retornavam pelo mesmo caminho decorando cada graffiti nos muros e escritos deixados nos troncos das árvores. No reencontro, a certeza e a dúvida sobre se ainda se conheciam tornava todas as cores mais vivas e podiam perceber no olho do outro todo um universo intacto. Ressaca de coração batendo forte não faz mal à ninguém.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Para as meninas

A Deusa tem três faces muito diferentes, mas as Marias do céu também são três e brilham numa mesma sintonia. Era nisso que ela pensava pra definir seu afeto pelas outras. Só compreendia a grandeza das palavras comadre e sororidade porque elas existiam. Feiticeiras ainda caminham por aí, e mesmo com essas ruas esburacadas, não são mais queimadas na fogueira. E ela só tinha a agradecer. 


Para Loeni Mazzei e Veruska Delfino, minhas comadres pontas de lança.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Atravessada

A estrada de ferro atravessa minha vida. A infância em Marechal Hermes, a família dividida pela linha do trem, a estação antiga e linda, o medo de atravessar a passagem subterrânea e ser carregada pelo rio, o dia em que a chuva alagou tudo e ninguém conseguiu voltar pra casa. A adolescência no centro de Nova Iguaçu, saltar do ônibus em meio ao lado comercial caótico e passar pelos camelôs da estação em direção ao estágio na Casa de Cultura com seu silêncio sepulcral e o cheiro característico dos afrescos, atravessar diversos bairros andando com os amigos guiados pelo muro da linha. O primeiro emprego em Miguel Couto, o ônibus cruzando os trilhos dos trens de carga, os créditos dos primeiros filmes da escola de cinema que carregam imagens daquelas linhas nuas, sem muros. O contato com a história do companheiro em Itacuruçá faz do extenso ferro nos fundos de casa banco e confidente das conversas de família. Os dois últimos anos chegando à Austin guiada pela passarela de caracol da estação e recepcionada pelos cheiros das frutas e verduras. Pra coroar essa relação, um camarada conhecido como Peregrino, talentoso e parceiro como poucos, anda cantando por aí assim "mas que rumo segue a vida, será que ela segue o rumo do trem?".

Pra ouvir a música, clique AQUI!



terça-feira, 11 de novembro de 2014

Temporais

Ela está encharcada. O ditado “quem está na chuva, é para se molhar” é realmente para ser levado a sério. Sair de manhã com o Sol gritando em pleno verão fluminense e achar que não vai chover no fim do dia é um erro fatal. Chegou em casa como se tivesse se enfiado embaixo de um chuveiro gelado e o fato de não ter carregado um guarda-chuva não faria diferença, temporais de verão não são para amadores. Poderia ter ficado aborrecida, mas a água fez bem pra alma, nada tem mais poder de renovar, reciclar, recriar, e o principal, mover. O que mais um peixe e um caranguejo têm em comum é a vontade de estar na água. Há temporais que vêm para o bem.

Para Diego Bion, com (muito) amor e água.

domingo, 9 de novembro de 2014

Pinheiros

Confusão, importância e dor. Os passos, hora apressados, hora passeando, vão determinando o compasso. Ninguém sabe do horizonte e o que parece dar errado vai se mostrando primordial. A catarse coletiva é obrigatória e os olhos que se cruzam brilham numa mesma cor. Uma figura preta embebida de branco se torna elemento fundamental e a ancestralidade vibra. A certeza de todos os deveres cumpridos é combustível do querer mais e a madrugada é quem acolhe o desejo. Horas de comunhão, de troca, de discussões intermináveis, do sorriso largo, da desaceleração, dos transbordamentos, do falar o que é preciso. Os mestres são de longa data e de datas próximas, todos tão iguais que vão se fundindo. A cidade atravessa, as esquinas pulsam. Bares e praças vão fazendo parte das histórias de vida. A conclusão de que ter se jogado aos 20 anos foi o topo e o precipício é mais um peso sobre os ombros. Arianos são os amores e dissabores, cancerianos os iguais, aquarianos o embate, escorpianos os melhores amigos e piscianos a paz. É realmente um desastre a chegada das 2h, a hora corre e a manhã chega muito depressa. Os Pinheiros são árvores imponentes, fortes, de madeira escura. E é aí que tudo faz sentido.

Marcos Serra por Mazé Mixo