segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Debaixo dos paralelepípedos, a praia.

Quando Flora olhava para si, via sempre um pedaço faltando. Seja olhando para baixo, o pedaço faltando ficava bem na altura do peito, ou quando se olhava no espelho. "O trabalho enobrece o homem mas, e a mulher, também?" era um pensamento recorrente, já que o impulso workaholic perseguia ambos, mas parece que só ela nasceu com o nobre, porém pesado, traço da responsabilidade afetiva. A dele não faz peso na balança.

No meio dos pedaços de papéis, canetas, cabos e mais um monte de outros trecos que viu espalhados pela cama dele uma vez - que logo depois foram colocados de qualquer jeito numa caixa de plástico para fins de "agora sim podemos deitar" - de fato não viu nenhuma profundeza, estava tudo mantido na segurança do raso, sem surpresas ou segredos, que morte triste. Tempos mortos, pulados e esquecidos, entre eles, haviam muitos.

Lembrou daquele dia em que marcaram para às vinte e duas horas mas Lio só chegou no dia seguinte, em outro lugar, para outro compromisso, e quando depois de semanas mencionou a possibilidade de um novo encontro, mais uma vez não cumpriu a promessa. Flora perdeu a conta de quantas vezes isso já aconteceu e riu uma gargalhada nervosa, se perguntando o que dentro dela permitiu que ele fizesse isso durante tanto tempo. As conversas eram sempre emanharados de metáforas, mas nesse dia foi especial, não só porque passaram boa parte da noite dividindo impressões à distância sobre um filme que só ela via - mesmo depois desse bolo gigante e que ainda assim não chegou aos pés do último que a deixou completamente desarrazoada - mas porque era sobre a intensidade do agora, citava o 21 de agosto de 1968 em Praga e porque "Debaixo dos paralelepípedos, a praia" é a frase do último agora que viveram, depois de outros tantos. Pena que Lio é bom em interpretação de texto e mandou de volta aquela foto, homem e multidão, defendendo sua famigerada jornada do herói. Ele é mestre em fazer com que ela se sinta muito excitada e viva, mas também de lhe tirar todo o tesão e lucidez rapidamente. A verdade é que ela sabe que a praia nunca vai chegar, não importam quantas possibilidades sejam apresentadas, nem quantos operários sejam escalados para a tarefa. Talvez fosse isso dentro dela que permitia que ele nunca cumprisse e conseguisse sair ileso. Porque não tinha mais pra onde ir, depois disso, era o fim mesmo.

Esquisito como estamos em pleno verão fluminense, acompanhados por esse calor úmido, mas como tudo parece estar em preto e branco para ela e, às vezes, até em francês. "La petit morte" fazia parte das expressões usadas por eles tanto quanto o "eu te amo". O querer salta mesmo pela boca e pelas mãos, mas nesse caso ficavam, sem nenhum motivo decente, devendo de serem realizados na prática.

Agora nada disso importa mais, a temporada de autoexílio estava aberta no país tropical, colocando o corpo ameaçado no mundo ou se perdendo dentro da própria cabeça e, Flora e Lio também não saíram impunes dessa. "Você tá namorando?" foi a última mensagem dele e ela nem se atreveu a responder, já foram calafrios suficientes só de ler a mensagem e lembrar dos dias de escuridão. O último pensamento da vez foi lembrar de ler Victor Heringer logo, para ver se ele ajuda a amansar esse amargo insistente que ela tem andado na boca.

Depois de todos esses devaneios em frente ao espelho, olhando pro peito esburacado, Flora tapou o buraco com camomila e vestiu uma blusa branca com a estampa de uma caveira florida na frente. Afinal, era dia de Oxalá, só não estava rolando a pureza do branco completo. Ainda em frente ao espelho, se encarou olhando bem lá dentro dos seus olhos e depois de pensar que não está certo tentar tapar esse buraco com camomila, voltou a devanear. Dessa vez não colocou Lio no riacho de pensamentos que lhe são tão caros, ajudava bastante se lembrar a cada dia um pouco menos do rosto dele. Lembrou das palavras daquela mulher que disse que tem buraco que é pra sempre mesmo, o que é até bom, que aí não tem risco de machucar no mesmo lugar de novo.