quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Aquele fundo desfocado bonito

Quando saiu de casa pela manhã, escolheu andar sem óculos durante todo o dia. Ver tudo com aquele fundo desfocado bonito que a gente vê nas fotografias parecia razoável depois de se sentir cuidada. Desejada, querida e até amada, sim, já tinha vivido algumas vezes, mas cui-da-da era novidade. E, talvez, fosse a primeira vez em que tudo estava acontecendo sem que parecesse mais um campo de batalha do que amor.

Era esquisito, haviam momentos em que não sabia muito como caber. Sempre que ele dizia "vamos fazer juntos" ou "deixa que eu faço pra você" ela desmontava, não conseguia nem olhar nos olhos dele. Mandar a mensagem dando mole foi tranquilo, ser chamada de safada na hora do sexo de boa, mas "deixa eu cuidar de você" ela ainda precisava se acostumar. É cruel só de contar, imagina de sentir. Fazia tempo que não era namorada de alguém, e principalmente, não se lembrava de ter sido assim facinho com ninguém.

A vontade era juntar seu tesouro em forma de print, as conversas cheias de delays nos apps, aquele monte de abusos com seus quereres e pedir que algum ser iluminado apagasse essas memórias. Porque isso ainda não era possível? "Traição é traição, romance é romance, amor é amor, e um lance é um lance" já diziam os Hawaianos, e a galera ainda não entendeu como organizar direitinho.

Passou aquele dia dedicada ao que dá sentido à sua trajetória, deu e recebeu notícias boas e, no caminho para sua uma-hora-por-semana, vendo o mundo embaçado em segundo plano, refletiu sobre o quanto há de felicidade e beleza no seu ordinário, e o quanto ela se sente grata. A ela mesma, aos parceiros de jornada e ao universo.

Saiu com o corpo meio febril, era quase sempre assim. No metrô, leu o texto da comadre e chorou, por elas duas, por tanto acúmulo. Chegando sozinha na casa emprestada, começou a ver aquele filme em que a mulher, sequestrada e estuprada, decide sair do quarto quando o filho completa 5 anos. Não deu conta. Sua angústia foi tanta que parou aos 20 minutos com a respiração ofegante. Primeiro porque a claustrofobia da maternidade tem cheiro, e nem sempre é bom. Segundo porque considerando as devidas diferenças, a identificação de uma fêmea humana com outra numa experiência como essas, mesmo na ficção, paralisa. Sentiu uma saudade doída dos filhos e de casa. O limite dela para o amor era medida por eles. Competir jamais, não amar eles junto nem pensar. Limites válidos principalmente pra aqueles em que dividir seria óbvio. É óbvio, não?

Ainda estava com a boca seca quando recebeu pelo whatsapp a notícia da morte de mais uma bixa preta na perifa, bem perto de casa. E doeu, mais uma vez. Pensou na irmã trans, pensou no namorado que ficou, pensou no amigo cor que foi assassinado há poucos anos. Pensou no amor. E no que queremos do amor.

As legendas amarelas de uma série sobre crimes, que deu play só pra ter companhia, estavam ficando muito embaçadas, a ponto de não dar pra ler. O cansaço estava tirando o desfocado bonito, agora tudo era nevoeiro. Rolando a tl de uma rede social, passou por um meme que dizia "fica triste não, tá todo mundo meio perdido mesmo". Mais uma desculpa pós-moderna pra não olhar o horizonte. Ainda bem que na terra dela quase não tem arranha-céu. "Ei João, fica triste sim, a gente tem que se achar pra poder se perder de novo", essa é pra você, filho. Amanhã, é presente.

sábado, 11 de agosto de 2018

Sola

"Sabe, gente
É tanta coisa pra gente saber
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer

Sabe, gente
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder"

Gil na letra de "Preciso Aprender a Ser Só" definiu a semana daquela moça. Corpo e mente pediram para ela parar depois do derradeiro choque térmico entre o laço e a fita métrica, no dia seguinte ao aniversário do lugar onde foi mais frágil. Tentando não dar ouvidos e seguir sua rotina de cruzar cidades pra dar sentido à vida, ela não parou. Ela se recusa a parar. Mas a conta chegou, o corpo obrigou depois da mente se desfazer em lágrimas ao ouvir a música. Depois de um dia inteiro vociferando contra o livre arbítrio, já que a nossa liberdade só começa quando termina a do outro e as pessoas estão cagando nas cabeças umas das outras, ela só queria paz. Uma mãe em estado solo não quer guerra com mais ninguém. O problema é que depois de ser atropelada por tantos trens achando que era a tão desejada luz no fim do túnel, ela tende a achar que o túnel é infinito. Tentando dar fim à mais uma pesada constatação, escreveu no seu caderninho de folhas coloridas "você consegue ouvir daí o meu coração bater?" enquanto ouvia em looping "eu preciso aprender a ser só, reagir e ouvir, o coração responder". A vida é didática, só não enxerga quem não quer.