quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Tornar-se

Ao invés de fechar os olhos e dormir fica deslizando o dedo na tela do celular e vendo rolar o feed. Parece que quer encontrar. Várias curtidas de uma vez, um domingo de preguiça, um funk do momento, uma flor amarela, um filme do Tarantino, um áudio divertido no whatsapp, um cheiro bom. Não vai. Tem tanta gente soltando as mãos, não respeitando quem o outro batalhou tanto pra ser. Teve criança a beça e olho no olho com uma das filhas preferidas de mamãe. Que pena amor. Que pena. Um brinde às mulheres que se tornaram. Ninguém chega aos 30 impune. A ancestralidade vibra.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A falsidade da calmaria

A vida vai passando que nem água em leito de rio. Passa e não retorna, nunca mais. Por mais que tente, ninguém consegue segurar e tudo vai acontecendo no tempo que tem que acontecer, não no tempo que a gente quer. Hoje eu vi um papo reto de uma mulher pra um cara na rua e ela berrava que "ao contrário da outra, que havia traído ele com o irmão, ela sempre estava ali". Li outro papo reto, uma postagem de uma amiga, que dizia "homem tem medo de mulher poderosa e bem resolvida". Eu não sei exatamente porque entrei nesse assunto no meio desse texto, talvez seja porque eu goste muito de um bom papo reto (embora geralmente eu me foda por causa disso). Agora eu me sinto suspensa, vazia. Nada é bom, nada é ruim. A ansiedade do que está por vir - porque sempre há vida por vir - é só o que me faz companhia. A merda é que ansiedade dói, fisicamente. Nem os barracos na beira dos trilhos, nem as cento e dez vezes em que me atirei, nem a imagem e som em movimento. Tudo é um grande nada. Tudo é calmaria. Por hora.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Os Três Mal-Amados

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia 
"Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.