terça-feira, 20 de novembro de 2018

Nossos caros leitores

Todas as vezes que me percebo com uma noite livre na cidade-ponte me perco do objetivo principal e tudo se concentra na forma de travessia dessa noite solitária. Sei que não vou receber um convite embrulhado em papel de presente vindo pelo whatsapp com o nome “quer passar essa noite comigo?” e tô assistindo de camarote tudo caminhando o mesmo caminho pela, o que? Quarta vez? Ando saindo do corpo só pra me olhar de cima em baixo com cara de espanto e sentir um misto de pena e admiração por essa coragem que tenho de te dar, de novo, sem que você se esforce para merecer, o lugar privilegiado de dar a ideia do baile e depois esperar que eu te chame pra dançar. Porque eu sempre chamo. E sabemos bem porque chamo.


Li num desses perfis-poéticos-de-instagram, sobre pessoas escrotas, abismos, pseudo-salvamentos e configuração de relacionamentos tóxicos. Fico aqui rindo com essas explicações quando penso em nós ~ que nós? ~ porque passar noites sortidas indo até você, depois de ter que te chamar pra dançar, nem é um relacionamento quanto mais tóxico. Eu nem consigo encaixar esse monte de pedaços de caminho no lugar duro, mas simples, de uma traição, agressão, manipulação ou algo que o valha. Nem isso você me dá, a oportunidade de encaixar a gente em algum lugar. O abandono, o limbo, o morno de que a bíblia tanto fala pra cuspir, vira chiclete na minha boca. Eu preferia que fosse quente mas eu não cuspo, fico mascando o chiclete sem gosto.

Fui empurrada pro abismo, saí dele sozinha e ainda entrei numas de querer salvar quem me empurrou sem que você pedisse. Isso é amor? Só porque é saudade todo dia? Na minha última uma-hora-por-semana, ela perguntou o que tudo isso significa. Tô pensando pra dar uma resposta digna na próxima e o esboço é: acredito que eu tô doendo sozinha, me colocando por sucessivas vezes nesse lugar porque preciso gastar essa minha onda de algum jeito, já que você se recusa a gastar ela comigo. O defeito é querer gastar a onda de qualquer jeito, eu acabo me gastando junto.


Sabe porque eu escrevo? Porque preciso desaguar em algum lugar esses litros de palavras, já que você faz questão de manter o ambiente controlado. Sabe porque eu publico? Porque preciso que alguém compartilhe dessa novela comigo, já que é você o meu leitor assíduo, mas não me dá nenhum feedback. Esses dias me disseram que nós somos um casal. Nós? Meu corpo todo está em guerra com meu coração rasgado e eu vou parar de escrever sobre nós. Nós? Não existe nós. E não vai existir, eu sempre soube disso mesmo que meu coração rasgado insista em colocar fones nos ouvidos para não ouvir o resto do corpo gritando que não vai ter nós.  Eu vou parar de escrever sobre as minhas tentativas de nós e vou gastar minha onda em outro caminho, vestida de preto e debaixo de Sol.


Diante da perspectiva da novela, fico pensando que parar de escrever sobre você pode me custar alguns dos meus leitores. Eles são meus, seus ou nossos? Vivendo aqui essa noite solitária, meu único desejo é que você pare de só dar ideia pra baile e passe a escrever junto comigo. Mas depois que o tesão acabar, eu vou voltar para a realidade e vou ouvir não meu corpo, mas sua voz me dizer “Eu já escrevo sozinho e só faço baile onde você não é convidada pra dançar”. E, acabou? Fim?

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Meu amor pelo Rei

Minha família, aquele núcleo base em que um se apoia no outro e que se destaca dos parentes, se forjou no candomblé pelas mãos de uma matriarca branca, filha de Yemanjá, e de um patriarca preto, que nos deixou precocemente, filho de Oxalá. Eu não tinha nem 3 anos completos quando por conta dos caminhos que precisamos percorrer, nos afastamos do culto aos ancestrais. A família do meu pai tinha uma fé tranquila no espiritismo de Kardec e minha mãe, uma médium de mão cheia, pôde se acolher nela durante anos cuidando da gente e de Ogum, orixá que nasceu em sua cabeça há 34 anos e que recebeu com toda sua bênção e proteção cada Pinheiro que brotou nessa terra depois disso.


Aqui na minha cidade, um vale na Baixada Fluminense que fica entre as serras do Mendanha e de Tinguá, as tempestades na época da minha infância eram monstruosas. Descampados e casas baixas deixavam raios e trovões fazerem festa no céu e na terra. E eu sempre morri de medo de raios e trovões. Com o passar dos anos e o aumento do número de casas e andares nas casas as tempestades foram amenizando, mas meu pavor não. Fui organizando o medo da melhor forma que consegui e nos momentos em que a chuva vinha acompanhada da cabeça zoada, eu não dava conta. Podia ventar e chover rios, mas raios e trovões eram a minha kriptonita e sempre perderam feio para os ratos.


Um dia, minha mãe voltou pro axé. O reencontro dela foi tão bonito que carregou os Pinheiros junto e como não podia ser diferente, eu também fui cuidadosamente entregue a Oxaguiã e Oxum, orixás donos da minha cabeça. Em meio a essa redescoberta do sagrado me descobri perdidamente apaixonada por outro orixá, o Rei Xangô. Quando olhava pro alto era ele quem sempre me olhava lá de cima. Foram muitos encontros especiais com ele, com filhos dele e quando engravidei do meu menino mais novo não tive dúvidas, dei o nome de João e disse em voz alta que era afilhado do Rei de Oyó.


Outro dia, ouvindo uma música de um cara que tem Exú no nome, me dei conta de que havia algumas tempestades que eu não entrava em pânico. Xangô me fez entender na prática, com tempo e carinho, onde mora o sagrado no candomblé, nessa sutileza e grandeza da relação de amor, respeito e reverência à natureza. A ancestralidade vibra no corpo e faz cada vez mais sentido.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Pra gente se entender, sei lá

(Para ler ouvindo Amor de Verdade / MC Kekel e MC Rita)

Novembro chegou e fazem dois anos do dia exato que engravidou. Foi no Dia de Finados, que ironia. Essa semana também teve um insight interessante: só cria quando dói - e ele é mestre em fazer doer e bagunçar as ideias, até quando parece simples. Obviamente não é simples mexer em terreno onde tem joelho de porco enterrado. Shakespeare tinha razão quando colocou na boca de Hamlet o "ser ou não ser". Ser ou não tanta coisa. Sempre ganha de presente essa encruzilhada aberta, caminho reto ou uma simples bifurcação são para os fracos. O Rio é um bagulho inteiro, o Moro não vai caçar o Bozo, não existe ketchup que não faça mal e nunca vão ter um dia pra se esquecerem que o mundo existe. Porque tem mundo demais em volta, dos dois. Vai seguir no ser ou não ser essa pessoa que não diz não? E como se não bastassem esses anos a bordo de uma montanha russa, a paisagem no trajeto continua bonita e o sorriso também, apesar do cansaço crônico e todas as cabeçadas dessa geração. Cancerianas não se esquecem de nada, mas se sabotam com maestria ímpar.