segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Bala soft entalada na garganta

Outro dia li que "saudade é bala soft entalada na garganta". Era uma pichação num muro - ou um lambe lambe colado numa parede, não lembro bem - mas estava numa foto postada num aplicativo. E nem era no primeiro plano da foto. O muro - ou parede - da foto tinha um amontoado de informações. Mas frases, pensamentos e sufocamentos sobre saudade me saltam aos olhos. A sensação da bala soft entalada organiza melhor em palavras a urgência da coisa do que a célebre frase que todos já ouvimos "saudade é coisa que dá e passa". Passa nada. Entala.

Saudade está intimamente ligada à memória e eu, por fatalidade, nasci com uma que é uma dádiva-maldição que não falha. Sendo assim caminho de braços dados com essa angústia esquisita do entalo. Todos os dias. Um dia dei um bug e pra seguir viva lidando com minha dádiva-maldição tomo balinhas e visito uma moça muito interessante uma vez por semana. Esquecer é uma premissa pra sobreviver nesses tempos e eu, não esqueço.

Lembro o cheiro da vitamina de abacate que minha avó preparava para mim e Fellipe numa casa em que morávamos no Centro de Nova Iguaçu quando eu tinha quatro anos. Eu elegi essa como a minha primeira lembrança, tenho outra desta mesma época que me fez escolher não saber qual é a primeira. Lembro do início da adolescência quando eu, Antônio e Suzana contávamos da varanda da casa dela quantos carros de uma determinada cor passavam pela Linha Vermelha durante um determinado período de tempo. Lembro de alguns dos textos decorados e do cheiro que ficava entranhado semanas no meu cabelo depois de apresentações de teatro no Sesc com Loeni e o restante da minha turma de Artes Cênicas. Lembro da chuva homérica que caiu antes do show do Cordel do Fogo Encantado no Aeroclube da minha cidade e em como eu e Diego dançamos molhados e felizes até minha sandália de couro se desfazer, e o tridente pintado da Serra de Madureira apagar. Lembro do exato tom do vermelho da fachada e do cheiro de papel, adolescentes e Pinho Sol que tinha a Escola de Cinema. Lembro de como eu ficava imensa e cansada pós as sessões do Buraco do Getúlio, sentada na esquina com bolsas abarrotadas de equipamento e material, bebendo cerveja no gargalo e sem certeza de como e a que horas voltaria para casa. Lembro da casa que pude chamar de minha por mais tempo, do sino dos ventos que ficava na varanda, da árvore que batizei de Tereza que ficava no quintal do vizinho, do horizonte visto pela janela e da música que Maurício fez por conta disso. Lembro da sensação de deitar bêbada na cama da Veruska - às vezes péssima, às vezes inconstantemente feliz, sempre exausta (era uma época de sobressaltos) - e de como me refugiava naquela calma da Glória. Lembro de ouvir da casa de Romario o baile funk no Morro do Feijão durante uma madrugada inteira. Lembro do papo reto que bati com Rebeca durante quase dois anos, regado a astrologia, rede, fumaça e água em seu terraço em Nilópolis.

Eu poderia narrar recordações infinitas aqui. Sou uma alma velha que coleciona recordações em forma de objetos, cheiros, sensações, sentimentos e me nutro disso. Sou isso. Mas, não pense que passo meus dias em sofrimento querendo que o tempo retorne. Nem toda recordação é saudade. A memória pode te fazer recordar experiências formativas que passaram e te tornaram outra pessoa. Você pode se recordar com carinho, mas passou. Saudade não. Saudade é bala soft entalada na garganta. E como faz pra não morrer sem ar?

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Uma metrópole cheia d'água

Pisamos, todos, numa terra recheada de água. Rios, baías, nascentes, mar. Mesmo com a poluição desse mundão de água que mais parece um autorretrato, um raio-x desse bicho humano hospedeiro dessa metrópole, as águas estão aqui, nos rodeando.

Apesar dessa introdução que parece apresentar um texto mais pragmático, que poderia falar sobre nosso falho sistema de distribuição de água potável, onde a água sai da Baixada Fluminense, vai direto até à Zona Sul e só depois retorna para a Baixada e para a Zona Oeste, com manobras esdrúxulas que escolhem o bairro que recebe água ou não em determinado dia através do Sistema Guandu; ou ainda que o Leste Fluminense e seu Sistema Imunana-Laranjal está fodido e que em breve sua população gigante não terá mais água para beber. Na verdade eu vim mesmo falar de divagações, em como me sinto tendo meu corpo feito metade de água, vivendo nessa terra cheia d'água, sob efeito dessa rocha gigante que flutua pertinho da gente.

Eu não tenho dúvidas da influência da Lua no nosso humor, libido, pragmatismo e autoestima, principalmente vivendo numa terra onde a maré e seus estados são elementos constantes. Eu claramente rendo mais sem Lua no céu. A Lua cheia me afoga. Um oceano de possibilidades, sensações e angústias me dão caixotes seguidos e o mais bizarro deles é a ovulação. Mulheres obviamente sentem mais os efeitos da Lua, das marés e dessas águas todas que nos rodeiam com esse "plus" biológico. Sei lá, eu realmente acredito que deveríamos levar mais a sério essa terra de muitas águas, ou melhor, levar mais a sério as muitas águas dessa terra. O que vemos espalhados por todos os cantos dessa metrópole não são valões, são rios. Veias abertas, com sangue correndo por elas. Tem água pra todo lado, dentro e fora da gente. A Lua vai regendo essa engrenagem poluída como pode e no fim a gente não entende porque tá tudo tão fora do lugar. Nos reconectar com nosso chão, com nossas águas, com a nossa ancestralidade, é disso que a gente precisa. Olhar lá atrás, descobrir como faz pra gente se reencontrar. Água, doce e salgada, está por todo lado, e é vida.

Eu daria tudo o que não tenho pra molhar os pés num Rio Botas, um dos últimos que ainda podemos ver aberto na Baixada, limpo e cruzando Nova Iguaçu majestosamente. E que delícia seria poder tomar um banho de mar no tesouro que é a Praia das Pedrinhas, em São Gonçalo, numa Baía de Guanabara toda limpa. Enquanto isso não acontece vou agradecendo assim "Obrigada Rio Guandu, pela água nossa de cada dia". Essa deveria ser a reza de todo carioca.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Qual o valor de um papel?

Quando falamos sobre valor, nessa sociedade tumultuada, associamos a palavra diretamente a dinheiro. Quando posso escolher, prefiro deixar entrar pelos meus olhos esse conjunto de símbolos traduzido por outro significado.

Há bem pouco tempo, ajudei a dar vida à iniciativa "O Valor da Cultura", que teve como premissa defender o valor da cultura, compartilhando experiências e trajetórias de jovens de origem popular da cidade do Rio de Janeiro. Geramos, durante pouco mais de um ano, um seminário no MAR - Museu de Arte do Rio, uma publicação e um documentário. Realizar a tutoria desses jovens - tão parecidos comigo - e a produção da iniciativa foi, sem dúvidas, uma das experiências mais interessantes da minha vida profissional e essencial para seguir atribuindo outros significados a essa palavra. Qual o valor da cultura? Era a nossa pergunta chave.

 Realizando uma pesquisa rápida no pai gugol, achei isso aqui:

Valor é a qualidade atribuída a quem tem talento, prestígio, competência, virtude, mérito ou merecimento intrínseco. É uma qualidade conferida a quem tem bravura, coragem e valentia. No sentido figurado, valor é a importância dada a quem se tem estima, afeto, apreço e consideração.

Faço agora uma outra pergunta: qual valor uma certidão de nascimento, contendo o nome do pai, tem para uma mãe?

No site do Instituto Brasileiro de Direito de Família tem uma notícia de agosto desse ano, informando que 5,5 milhões de brasileiros não têm o nome do pai no registro. Quando a gente transforma a coisa em números, fica um tanto impessoal. É exatamente por isso que não gosto de números. Vamos tentar então uma comparação: em 2017, o Rock in Rio teve um público total de 700 mil pessoas em 7 dias de shows, uma média de 100 mil pessoas por dia. Todo mundo já viu ao menos uma foto do Rock in Rio. Pensa naquele tantão de gente aglomerada, os 100 mil de um único dia, e multiplica por 7,85. Vai dar cinco milhões, quatrocentos e noventa e cinco mil. Ainda vão faltar 5 mil brasileiros sem nome do pai na certidão.

Para uma mãe solo, não ter o nome do pai na certidão de um filho é um mix de sentimentos. Rola solidão, culpa, raiva, dor. Sim, dor física até. Pensa, por exemplo (e vou falar aqui a pior das hipóteses), se a criança vai parar numa UTI, só a mãe, e apenas ela, pode ser acompanhante. Eu fui logo com o dedo na ferida porque falar em Dia dos Pais sem o pai presente na escola não é o suficiente - talvez nem essa informação da UTI seja - para que a nossa sociedade entenda que essa é uma questão que precisa ser debatida e combatida pra ontem. E, tô aqui falando apenas de ~ nome na certidão ~. Não falei sobre presença, afeto, divisão das demandas da criança. Esse fundamento eu nem vou puxar, haja braço pra puxar a água desse poço.

Eu esperei dois anos para ter o nome do pai de João em sua certidão. A retificação foi emitida exatamente no dia em que meu filho completou dois anos. Para mim, o valor que uma certidão de nascimento contendo o nome do pai tem para uma mãe é um sentimento de alívio trêmulo e segurança plena de que fiz tudo que estava ao meu alcance. Daqui pra frente, a jurisdição dessa relação não é mais minha. Já era tempo!

Recapitulando: valor é a importância dada a quem se tem estima, afeto, apreço e consideração. É sobre isso.

> Para saber mais sobre a iniciativa O Valor da Cultura (inclusive ver o filme e ler a publicação), CLIQUE AQUI.

> Para ler a notícia do Instituto Brasileiro de Direito de Família, CLIQUE AQUI.

> Para ler sobre os números do Rock in Rio, CLIQUE AQUI.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Sobre o que eu sei (e o que não sei mais)

Ma, meu bem,

Que beleza receber essa mensagem, mesmo que por esse motivo. Me sinto lisonjeada quando mulheres me procuram pra dividir algo, logo eu que tô aqui na árdua tentativa diária de não me afogar. É um motivo pertinente mas, acredito com toda a força do que sei (e do que eu não sei mais) que ele não deveria existir.

Entendo perfeitamente o que está sentindo, mesmo com nossas realidades distintas, como você bem pontuou. O que temos a dizer? O que de tão importante falaremos diante de todas as mazelas desse mundo insano e desigual, com todos os nossos (distintos, mas existentes) privilégios? Também penso "O que eu tenho a dizer? Mesmo pobre, periférica, mãe solo, vinda de uma família matriarcal e  candomblecista, eu sou uma mulher branca, nunca fui abusada sexualmente, contei (e conto) com uma família que me ama, que mesmo com todas as dificuldades segurou a barra para que eu não precisasse trabalhar antes dos 18 anos, completei o Ensino Médio, faço o que gosto mesmo com toda a precarização de trabalho do setor cultural e social, tenho todos os dentes, etc, etc, etc...".

Mas sabe minha querida, qual é o tanto de coisa que não devemos ter, ou precisamos viver, para que só então ganhemos o aval que nos garanta o direito à expressão? É óbvio - para nós, infelizmente não tão óbvio para todas e todos - que precisamos estar atentas e reconhecer nossos privilégios, ter consciência do quanto mulheres negras, negros em geral, LGBTs, deficientes físicos, pobres, favelados, periféricos e etceteras tiveram (e ainda têm, há muito para ser feito) seus direitos, suas condições como humanos negados ao longo da história. E ainda, não só ter consciência, mas pensar e pôr em prática reparação imediata, ao contrário desse looping de monstruosidades que seguem acontecendo (se é que reparação é algo possível, mas esse é outro papo). Mesmo tudo isso jamais deve ser motivo para que você, ou eu, nos privemos de dizer, de escrever, de interpretar, de dançar, de nos expressar seja na forma ou linguagem que for.

Além disso, eu sou eu. Mais ninguém. Só eu sei como foram esses 33 anos em que estou encarnada nesse planeta, a ordem em que as coisas aconteceram, o cheiro de cada passo, cada barco ou carro que me carregou, cada rua deserta que atravessei com medo - como toda e qualquer mulher. Mais ninguém.

Mais ninguém se tornou coordenadora da primeira escola de audiovisual da Baixada Fluminense aos 26 anos. Assim como mais ninguém desejou e viveu os primeiros passos como atriz da mesma maneira que você. Mais ninguém foi mãe solo aos 30 depois de um casamento e um filho como eu fui, assim como mais ninguém passou pela vivência Malhação-seguida-de-maternidade-solo aos 18 anos como você. Sabemos da realidade/classe/parcela da sociedade onde meninas geralmente não se tornam mães quando engravidam, porque a família tem grana para resolver pagando formas seguras das adolescentes não terem seus bebês - mesmo que por vezes queiram-, para não "estragarem suas vidas". Sabemos também, é importante pontuar, como muitas meninas periféricas morrem porquê não querem ser mães, engravidam e não têm acesso à formas seguras de interrupção da gravidez. Você, aos 18 anos, enfrentou pessoas hipócritas que se consideram semideuses, que te olharam e te julgaram, para ter teu menino. Você quis teu menino! E isso faz parte de você e do que inspira às pessoas, assim como mais um tanto de características e histórias que são só suas.

Existem pessoas que se inspiram na SUA trajetória. Não na minha, não na de outra mulher. E não cabe colocar valor de importância nisso. Cada ser humano é um universo inteiro. Você é um universo inteiro. E se você fala e divide esse universo de forma sincera, seja escrevendo ou dançando, não tem do que ter vergonha ou medo.

Você é brilhante, atenta, sensível, consciente do mundo a sua volta, é de carne e osso e sabe disso. Tá valendo pra caramba. Existem montes de pessoas que se recusam a ver com olhos de ver e ouvir com ouvidos de ouvir - e é doloroso mesmo, a ignorância (ou a negação, pra quem consegue) é uma bênção. É por isso que a Amazônia pega fogo e que ouço helicópteros sobrevoando minha casa na Maré às 6h da manhã, não porque não há relevância no que você precisa expressar. Então vá e diga. Escrevendo, nos palcos ou dançando.

Com amor, Lua.