segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Sobre o que eu sei (e o que não sei mais)

Ma, meu bem,

Que beleza receber essa mensagem, mesmo que por esse motivo. Me sinto lisonjeada quando mulheres me procuram pra dividir algo, logo eu que tô aqui na árdua tentativa diária de não me afogar. É um motivo pertinente mas, acredito com toda a força do que sei (e do que eu não sei mais) que ele não deveria existir.

Entendo perfeitamente o que está sentindo, mesmo com nossas realidades distintas, como você bem pontuou. O que temos a dizer? O que de tão importante falaremos diante de todas as mazelas desse mundo insano e desigual, com todos os nossos (distintos, mas existentes) privilégios? Também penso "O que eu tenho a dizer? Mesmo pobre, periférica, mãe solo, vinda de uma família matriarcal e  candomblecista, eu sou uma mulher branca, nunca fui abusada sexualmente, contei (e conto) com uma família que me ama, que mesmo com todas as dificuldades segurou a barra para que eu não precisasse trabalhar antes dos 18 anos, completei o Ensino Médio, faço o que gosto mesmo com toda a precarização de trabalho do setor cultural e social, tenho todos os dentes, etc, etc, etc...".

Mas sabe minha querida, qual é o tanto de coisa que não devemos ter, ou precisamos viver, para que só então ganhemos o aval que nos garanta o direito à expressão? É óbvio - para nós, infelizmente não tão óbvio para todas e todos - que precisamos estar atentas e reconhecer nossos privilégios, ter consciência do quanto mulheres negras, negros em geral, LGBTs, deficientes físicos, pobres, favelados, periféricos e etceteras tiveram (e ainda têm, há muito para ser feito) seus direitos, suas condições como humanos negados ao longo da história. E ainda, não só ter consciência, mas pensar e pôr em prática reparação imediata, ao contrário desse looping de monstruosidades que seguem acontecendo (se é que reparação é algo possível, mas esse é outro papo). Mesmo tudo isso jamais deve ser motivo para que você, ou eu, nos privemos de dizer, de escrever, de interpretar, de dançar, de nos expressar seja na forma ou linguagem que for.

Além disso, eu sou eu. Mais ninguém. Só eu sei como foram esses 33 anos em que estou encarnada nesse planeta, a ordem em que as coisas aconteceram, o cheiro de cada passo, cada barco ou carro que me carregou, cada rua deserta que atravessei com medo - como toda e qualquer mulher. Mais ninguém.

Mais ninguém se tornou coordenadora da primeira escola de audiovisual da Baixada Fluminense aos 26 anos. Assim como mais ninguém desejou e viveu os primeiros passos como atriz da mesma maneira que você. Mais ninguém foi mãe solo aos 30 depois de um casamento e um filho como eu fui, assim como mais ninguém passou pela vivência Malhação-seguida-de-maternidade-solo aos 18 anos como você. Sabemos da realidade/classe/parcela da sociedade onde meninas geralmente não se tornam mães quando engravidam, porque a família tem grana para resolver pagando formas seguras das adolescentes não terem seus bebês - mesmo que por vezes queiram-, para não "estragarem suas vidas". Sabemos também, é importante pontuar, como muitas meninas periféricas morrem porquê não querem ser mães, engravidam e não têm acesso à formas seguras de interrupção da gravidez. Você, aos 18 anos, enfrentou pessoas hipócritas que se consideram semideuses, que te olharam e te julgaram, para ter teu menino. Você quis teu menino! E isso faz parte de você e do que inspira às pessoas, assim como mais um tanto de características e histórias que são só suas.

Existem pessoas que se inspiram na SUA trajetória. Não na minha, não na de outra mulher. E não cabe colocar valor de importância nisso. Cada ser humano é um universo inteiro. Você é um universo inteiro. E se você fala e divide esse universo de forma sincera, seja escrevendo ou dançando, não tem do que ter vergonha ou medo.

Você é brilhante, atenta, sensível, consciente do mundo a sua volta, é de carne e osso e sabe disso. Tá valendo pra caramba. Existem montes de pessoas que se recusam a ver com olhos de ver e ouvir com ouvidos de ouvir - e é doloroso mesmo, a ignorância (ou a negação, pra quem consegue) é uma bênção. É por isso que a Amazônia pega fogo e que ouço helicópteros sobrevoando minha casa na Maré às 6h da manhã, não porque não há relevância no que você precisa expressar. Então vá e diga. Escrevendo, nos palcos ou dançando.

Com amor, Lua.

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