Bem, só vim aqui mesmo pra deixar um conto dele. É que pra mim, Fraga escreve como se sempre estivesse em setembro.
Chuva
de Estrelas
de Antônio Fraga
Ao
bom amigo e pintor Pancetti
Poeta.
Os
olhos melosos, a juba leonina e o ar distante denunciam-no.
Comprava-o,
a roupa mal amanhada, descolorida, imunda.
E
para que não sobre dúvidas, vejam-lhe o nome, muito ridículo é certo, mas
poético à beça – Cândido Gentil.
Nasceu
poeta como quem nasce corcunda, por fatalidade. Fatalidade genealógica.
O
avô, nos tempo de Pedro II, amerceou as damas da corte com galanteios rimados
e, não satisfeito com isso, irmanou-os num volume – Gentilezas.
O
pai contou sílabas pelos dedos e botou mais estrelas nos seus versos que o bom
Deu no infinito.
Ele,
zeloso como um chinês pelo fulgor da tradição familiar, “musicará idéias que
elevarão à estratosfera o glorioso nome dos Gentis” – poetas incompreendidos e
hereditários.
O
instinto segredou-lhe algo sobre os estilos decadentes. Os cabeçalhos dos
pasquins, sempre enlutados com o carvão das letras quilométricas, mostraram-lhe
que o mundo tem sede de novidades. E um intelectual de vanguarda explicou-lhe
que “para ser modernista basta virar as coisas pelo avesso.”
Não
sabe que a originalidade é aquela “outra história” que o Kipling não contou;
que os Baudelaires não tingem mais os cabelos de verde; e que escrever coisas
sem nexo não é “mariodeandradismo”, é burrice.
Vamos
surpreendê-lo em ação.
Masturba-se
– quero dizer, pensa. Olha para o teto, na falta de céu, em busca de
inspiração. Só vê sujeira de moscas, mas persiste,
A
inspiração desce do teto. Trepa na pena. A pena desliza no papel, desenhando,
num cursivo que três anos de caligrafia aprimoraram as palavras.
Pronto.
Já temos título – Chuva de estrelas. – Que título! Vai causar inveja a muita
gente boa. Ora se vai!
Destaca
as sílabas, vagarosamente, saboreando-as:
-
Chu-va-de-es-tre-las.
Bota
reticências depois de estrelas, para o título ficar mais engraçadinho. Sublinha
o título. Beija o título.
Que
diabo! Não é que ia esquecendo a ilustração? É preciso de fato pensar na
ilustração.
Coça
a cabeça. Uma mulher nua? Sim, uma mulher nua e as estrelas prateadas
escorrendo pelo corpo. Esvazia a unha do excesso de caspa. A ilustração é caso
resolvido.
Agora
espreme o cérebro em busca de um poema que concorde com o título. Fica penando
um quarto de hora à cata do primeiro verso. Nem pingo de idéia!
Enquanto
o verso não vem, namora um pensamento. Ei-lo: chuva de estrelas dá um ótimo
título para o livro. É. Está resolvido.
Escreverá
um livro.
E
o editor? E a crítica?
Nada
de editores. Os editores são uns piratas. Nem um exemplar para a crítica. A
crítica é incompetente.
Mastiga
as palavras piratas e, incompetente como um homem superior, como um gênio!
Começa
a ser consagrado – na imaginação, por enquanto. Solicitam-lhe autógrafos,
entrevistas – como os repórteres são cacetes! – e é confidente de ministros.
Ministros? Ministros? Ministros nada! Vê lá se vai dar confiança a ministros. O
ditador? Sim, confidente do ditador. Ali na batata!
Ensaia
sorrisos hipócritas, protetores, compassivos.
-
Seu Cândido, vou desligar a luz. Ta na hora.
É
Dona Maricota, a proprietária da pensão, sempre preocupada com o gasto de
energia elétrica.
Coitada,
ela não sabe quem hospeda, pensa. Olha mais uma vez o título, despede-se e
deita-se, ferrando logo no sono.
E
é assim que Cândido Gentil, último do seu nome, “pública” diariamente um livro.
Rio de Janeiro, 1939
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