quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Antônio Fraga

A postagem de hoje é em homenagem ao incrível Antônio Fraga - pra entender um pouquinho mais sobre esse cara, deixo o link de uma postagem no Blog do Ferréz chamada "Antônio Fraga mais marginal impossível" e uma matéria de Mauricio Stycer, repórter do iG, intitulada "Antônio Fraga: a solidão de um grande escritor". Já postei há muito tempo um poema dele, querendo ler também, você encontra aqui.

Bem, só vim aqui mesmo pra deixar um conto dele. É que pra mim, Fraga escreve como se sempre estivesse em setembro.


Chuva de Estrelas
de Antônio Fraga

Ao bom amigo e pintor Pancetti

Poeta.
Os olhos melosos, a juba leonina e o ar distante denunciam-no.
Comprava-o, a roupa mal amanhada, descolorida, imunda.
E para que não sobre dúvidas, vejam-lhe o nome, muito ridículo é certo, mas poético à beça – Cândido Gentil.
Nasceu poeta como quem nasce corcunda, por fatalidade. Fatalidade genealógica.
O avô, nos tempo de Pedro II, amerceou as damas da corte com galanteios rimados e, não satisfeito com isso, irmanou-os num volume – Gentilezas.
O pai contou sílabas pelos dedos e botou mais estrelas nos seus versos que o bom Deu no infinito.
Ele, zeloso como um chinês pelo fulgor da tradição familiar, “musicará idéias que elevarão à estratosfera o glorioso nome dos Gentis” – poetas incompreendidos e hereditários.
O instinto segredou-lhe algo sobre os estilos decadentes. Os cabeçalhos dos pasquins, sempre enlutados com o carvão das letras quilométricas, mostraram-lhe que o mundo tem sede de novidades. E um intelectual de vanguarda explicou-lhe que “para ser modernista basta virar as coisas pelo avesso.”
Não sabe que a originalidade é aquela “outra história” que o Kipling não contou; que os Baudelaires não tingem mais os cabelos de verde; e que escrever coisas sem nexo não é “mariodeandradismo”, é burrice.
Vamos surpreendê-lo em ação.
Masturba-se – quero dizer, pensa. Olha para o teto, na falta de céu, em busca de inspiração. Só vê sujeira de moscas, mas persiste,
A inspiração desce do teto. Trepa na pena. A pena desliza no papel, desenhando, num cursivo que três anos de caligrafia aprimoraram as palavras.
Pronto. Já temos título – Chuva de estrelas. – Que título! Vai causar inveja a muita gente boa. Ora se vai!
Destaca as sílabas, vagarosamente, saboreando-as:
- Chu-va-de-es-tre-las.
Bota reticências depois de estrelas, para o título ficar mais engraçadinho. Sublinha o título. Beija o título.
Que diabo! Não é que ia esquecendo a ilustração? É preciso de fato pensar na ilustração.
Coça a cabeça. Uma mulher nua? Sim, uma mulher nua e as estrelas prateadas escorrendo pelo corpo. Esvazia a unha do excesso de caspa. A ilustração é caso resolvido.
Agora espreme o cérebro em busca de um poema que concorde com o título. Fica penando um quarto de hora à cata do primeiro verso. Nem pingo de idéia!
Enquanto o verso não vem, namora um pensamento. Ei-lo: chuva de estrelas dá um ótimo título para o livro. É. Está resolvido.
Escreverá um livro.
E o editor? E a crítica?
Nada de editores. Os editores são uns piratas. Nem um exemplar para a crítica. A crítica é incompetente.
Mastiga as palavras piratas e, incompetente como um homem superior, como um gênio!
Começa a ser consagrado – na imaginação, por enquanto. Solicitam-lhe autógrafos, entrevistas – como os repórteres são cacetes! – e é confidente de ministros. Ministros? Ministros? Ministros nada! Vê lá se vai dar confiança a ministros. O ditador? Sim, confidente do ditador. Ali na batata!
Ensaia sorrisos hipócritas, protetores, compassivos.
- Seu Cândido, vou desligar a luz. Ta na hora.
É Dona Maricota, a proprietária da pensão, sempre preocupada com o gasto de energia elétrica.
Coitada, ela não sabe quem hospeda, pensa. Olha mais uma vez o título, despede-se e deita-se, ferrando logo no sono.
E é assim que Cândido Gentil, último do seu nome, “pública” diariamente um livro.


Rio de Janeiro, 1939


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